Vera Dantas
Em junho de 2009, o administrador Ricardo Nunes agendou, com duas semanas de antecedência, o exame de cintilografia renal, pedido por seu urologista para definir a necessidade de uma cirurgia. Ao chegar ao laboratório, no Rio de Janeiro, ele foi surpreendido com a notícia de que o procedimento tinha sido suspenso e, o mais grave, que não havia previsão para sua realização. A única informação que recebeu, por parte da atendente da clínica, foi que "a Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) tinha parado de fornecer o medicamento necessário ao exame. "Devido à gravidade do seu caso, seu médico providenciou a realização de outros exames que, em conjunto, substituiriam a avaliação da cintilografia.
Assim como Ricardo, milhares de pessoas, em todo o país, deixaram de ser atendidas naquele período, pela falta do medicamento "da Cnen". Na verdade, a suspensão devia-se à falta do tecnécio-99, radiofármaco empregado na maioria dos exames de diagnóstico por cintilografia, que permitem investigar tumores, doenças cardiovasculares, função renal, problemas pulmonares, neurológicos, hepáticos, patologias osteoarticulares, dentre outros. O radiofármaco é fornecido pelos institutos de pesquisa ligados à Cnen - daí a compreensível confusão da atendente.
A interrupção no fornecimento do tecnécio pegou de surpresa também médicos e laboratórios. Sem saber quando a entrega seria restabelecida, não houve tempo hábil para avisar o cancelamento aos pacientes, adultos e crianças, que tinham exames agendados. A situação foi ainda pior para os moradores de cidades pequenas sem clínicas especializadas, que são obrigados a se deslocar para os grandes centros para realizar os exames. Além do tempo de viagem, muitos perderam, também, o dia de trabalho.
"Os serviços de medicina nuclear atendem um público de grandes proporções, formado em grande parte por pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Para se ter um exemplo dessa dimensão, somente o serviço de medicina nuclear do Incor realiza uma média de dois mil procedimentos mensais, em pacientes da capítal e outras cidades do estado", explica o dr. José Soares, médico do Instituto do Coração (Incor), de São Paulo, e presidente da Sociedade Brasileira de Biologia, Medicina Nuclear e Imagem Molecular (SBBMN). "Em todo o país, são realizados cerca de 8 mil procedimentos mensais", completa.
Crise anunciada
Esta não é a primeira vez que o país se vê às voltas com a falta de radioisótopos. No final de 2007, a interrupção do funcionamento do reator nuclear canadense National Research Universal (NRU), responsável pelo atendimento de 30% a 40% da demanda mundial de molibdênio-99, gerou a primeira crise internacional da falta do medicamento. O problema com o reator canadense também afetou a disponibilização do iodo-131, usado no tratamento do câncer da tireóide, cuja maior parte é importada.
O molibdênio-99 é a matéria-prima utilizada na produção do gerador de tecnécio-99, radiofármaco considerado como o isótopo pai da medicina nuclear, pois é usado em 90% dos exames. O Ipen fornece semanalmente geradores de tecnécio-99 para cerca de 300 clínicas e hospitais de todo o país. O Brasil consome em torno de 5% da produção mundial do radioisótopo, ao custo de US$20 milhões ao ano. Grande parte da demanda mundial do tecnécio-99 é atendida por apenas quatro reatores: o NRU, no Canadá; o HFR-Petten, na Holanda; o Safari, na África do Sul; e o BR2, na Bélgica.
A importação consegue suprir cerca de 70% das necessidades de molibdênio-99 do país. A maior parte vem da Argentina.
Em maio de 2009, uma nova parada do reator canadense, devido a problemas técnicos, provocou outra crise internacional no fornecimento do tecnécio-99. Os poucos países fornecedores não davam conta de atender toda a demanda e, ainda, o preço do insumo aumentou cerca de 200%. Diante da gravidade da crise, considerada como a mais longa e de maior impacto já sofrida pela medicina nuclear no país, membros da comunidade, de diversos estados, além de representantes do Ipen e da Cnen, promoveram um grande encontro em julho de 2009, que resultou na criação de um grupo de 200 pessoas voltado para buscar uma solução para o problema. A esse grupo se juntaram, posteriormente, técnicos do Ministério da Saúde.
A primeira ação proposta, e aceita pelo Ministério, foi a importação do radioisótopo, em caráter emergencial. "Com isso, consegue-se suprir cerca de 70% das necessidades do país", informa o presidente da SBBMN. O principal fornecedor é a Argentina, seguida da África do Sul e de Israel.
Soluções paliativas
No início da crise, a incerteza sobre a retomada do fornecimento do tecnécio-99 obrigou muitos médicos a basear suas condutas em outras informações clínicas, mesmo diante do risco de desconhecer aspectos que, segundo o dr. José Soares, "seriam fundamentais para a tomada de diagnóstico".
No entanto, essa situação crítica foi sendo aos poucos superada, graças à conjunção de dois importantes fatores: as medidas emergenciais que permitiram o restabelecimento, ainda que precário, do fornecimento do radiofármaco; e a atuação da comunidade de medicina nuclear para minimizar os efeitos da crise, buscando atender ao maior número possível de pacientes, com o pouco materia disponível. Os casos de maior gravidade fora priorizados e o horário de atendimento foi ampliado, estendendo-se à noite, fins de semana e feriados.
Além disso, foram adotadas novas condutas para um maior aproveitamento da medicação. Uma delas foi a redução da dose radioativa preconizada para os exames, ao mesmo tempo em que se aumentou o tempo de exposição ao aparelho. "A diminuição do medicamento implica no aumento de tempo de aquisição, ou seja, demora-se mais para fazer a imagem. Mas, se há uma perda em termos de tempo, ganhamos no aumento do número de doses, que é o ponto crítico. O número de pacientes atendidos passa a ser maior", explica o dr. José Soares.
O mutirão envolveu mais de 300 laboratórios, em todo o país, e acarretou aumento de despesas com o pagamento de horas extras e contratação de equipes adicionais. Um problema adicional é que a remuneração dos procedimentos por parte do SUS não cobria os custos de aquisição de matéria-prima. Segundo o dr. José Soares, antes mesmo da crise estourar, o preço do gerador de tecnécio sofre um aumento de 70% em fevereiro de 2009, sem que a tabela de medicina nuclear fosse reajustada. O repasse pleiteado ao Ministério da Saúde, no entanto, só foi concedido em setembro.
No final do ano, o Ipen acenou com um novo reajuste, necessário para cobrir o prejuízo na compra do material, que teve um novo aumento no mercado mundial. Sem ter como fazer frente a essa despesa, a comunidade de medicina nuclear apelou ao Ministério da Saúde. Sensibilizados com a situação, os técnicos do Ministério convocaram uma reunião com todas as partes envolvidas, da qual resultou um acordo em que o Ministério da Saúde arcaria com a despesa adicional do Ipen. "Esta foi uma medida muito importante e mostrou que o Ministério da Saúde reconhece a importância da continuidade dos exames de medicina nuclear", afirma o presidente da SBBMN.
Dependência externa
Em maio passado, durante a Jornada Paulista de Radiologia 2010, uma mesa-redonda com representantes do Ipen, da Cnen e da comunidade de medicina nuclear concluiu que, apesar de estar atualmente sob controle, o cenário de fornecimento de radioisótopos é frágil, pois se sustenta na importação da matéria-prima. A solução se daria em três níveis. No nível imediato, há unanimidade sobre a necessidade de se criar um comitê governamental permanente, envolvendo os ministérios da Saúde e Ciência e Tecnologia, para o gerenciamento emergencial da crise. "É preciso tomar medidas imediatas, que eliminem as dificuldades burocráticas, agilizem licitações, disponibilizem um orçamento, enfim, que façam tudo o que for necessário para que continuemos tendo acesso à matéria-prima, de qualquer lugar que ela venha", explica o dr. José Soares.
A médio prazo, é fundamental criar novas alternativas de fornecimento. O cenário não é dos mais favoráveis: dos quatro reatores existentes, todos com cerca de 50 anos, que respondem por 60% da produção mundial, dois estão parados. Na América Latina, a única fornecedora atua é a Argentina, que abastece 30% do mercado brasileiro. O Chile deve começar a produzir este ano, mas a produção destina-se apenas ao consumo local. Já o Peru conta com um reator desativado, que só deverá voltar a operar a médio prazo.
Solução definitiva
Todos os setores envolvidos concordam que somente a construção de um reator multipropósito poderá solucionar definitivamente o problema. O projeto, que foi aprovado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, e tem previsão de operação em cinco anos, é considerado estratégico, por sua aplicação não só na medicina como na produção de alimentos e em outros setores. "Além disso, ele será uma ferramenta importante também para o ensino e o desenvolvimento tecnológico", ressalta o presidente da SBBMN.
"O RMB beneficiará não apenas a medicina nuclear, mas o setor nuclear brasileiro como um todo. Ele é um projeto de arraste tecnológico e estratégico, porque atende a áreas essenciais para o desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro", explica o coordenador-técnico da implantação do RMB, José Augusto Perrotta. Segundo ele, se o país quer ter um programa nuclear consolidado nos próximos 30 anos, precisa começar a investir agora, principalmente em um programa de reposição de pessoal qualificado que possa sustentar o PNB. "O RMB será uma ferramenta valiosa para o treinamento de recursos humanos no setor", afirma.
FONTE: Brasil Nuclear
Informativo da Associação Brasileira de Energia Nuclear
Ano 15 - Número 36 - 2010