quarta-feira, 7 de abril de 2010

Medicina Nuclear ao alcance de todos

Ampliação da produção de radiofármacos, inclusão de procedimentos na lista da ANS e na tabela do SUS e política de preços adequada são vitais para democratizar o acesso da população aos exames e terapias

Vera Dantas

No final de 2007, a interrupção do funcionamento do reator nuclear da empresa canadense MDS Nordion, maior produtora mundial do molibdênio radioativo, provocou uma crise mundial no fornecimento da substância. O molibdênio é a matéria-prima utilizada na produção do gerador de tecnécio-99, radio fármaco empregado na maioria dos exames diagnósticos por cintilografia, que permite investigar tumores, doenças cardiovasculares, função renal, problemas pulmonares, problemas neurológicos, hepáticos, patologias osteoarticulares, dentre outros. A crise foi solucionada por uma medida emergencial do governo do Canadá, que permitiu a volta de operação do reator National Research Universal (NRU), localizado em Ontário, mas a suspensão afetou a realização desse tipo de exame de medicina nuclear em muitos países, entre eles o Brasil.

Para evitar a repetição de problemas como este, a comunidade de medicina nuclear vem alertando as autoridades sobre a situação de completa dependência do fornecimento externo do material e reivindica o investimento no reforço da infra-estrutura de produção dos radiofármacos utilizados em procedimentos de medicina nuclear. Entre as medidas pleiteadas estão a implantação de um reator de alto fluxo (equipamento que produz o molibdênio) no país, a instalação de novos cíclotrons (equipamentos que produzem outros tipos de radiofármacos de meia-vida curta, utilizados em PET Scan) em diversas regiões do país e, também, o investimento na radiofarmácia nacional, de forma a viabilizar a ampliação dos serviços de medicina nuclear e sua oferta para toda a população. Mas, para democratizar o acesso aos exames e terapias de medicina nuclear, torna-se indispensável que todos os procedimentos constem no rol de procedimentos da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que estejam cobertos na tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e, ainda, que seja elaborada uma política de preços adequada.

Todas essas reivindicações foram apresentadas pelo médico-chefe do Serviço de Medicina Nuclear do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas de São Paulo e presidente da Presidente da Sociedade de Biologia, Medicina Nuclear e Imagem Molecular (SBBMN), José Soares, no Senado Federal, durante sessão especial dedicada ao novo Programa Nuclear Brasileiro (PNB). O especialista denunciou aos senadores as graves conseqüências decorrentes da interrupção do fornecimento do molibdênio e de outras matrizes utilizadas na produção de radiofármacos, no final do ano passado. “Vários exames deixaram de ser feitos nas diferentes regiões do país, uma vez que o tecnécio é o isótopo pai da medicina nuclear, usado na maioria dos estudos cintilográficos de áreas como o cérebro, coração, pulmão, aparelho digestivo e na estrutura óssea”. Ele informou que o problema com o reator canadense também afetou a disponibilização do iodo-131, usado no tratamento do câncer da tireóide,e cuja maior parte é importada – o país produz apenas cerca de 40% do que utiliza. “Não podemos ficar à mercê do fornecimento externo. Precisamos ter um reator de alto fluxo, que permita produzir todos os radioisótopos utilizados no país, principalmente o tecnécio e o iodo, que são empregados mais rotineiramente na medicina nuclear”, alertou.

Produção nacional e uso

Para o funcionamento de laboratórios de medicina nuclear são necessários radioisótopos - tecnécio-99m, iodo-131, gálio-67, tálio-201, dentre outros -, radiofármacos não marcados e marcados com materiais radiativos. A maioria dos radiofármacos utilizados no país são produzidos ou distribuídos pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, e pelo Instituto de Energia Nuclear (IEN), no Rio de Janeiro, ambos geridos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

Apesar da dependência externa de alguns materiais, principalmente de radioisótopos como o tecnécio-99m e iodo-131, o Brasil está na liderança da produção de radiofármacos na América Latina, principalmente na produção de radiofármacos não marcados prontos para marcação com tecnécio-99m. O Ipen responde por cerca de 95% da produção nacional, fornecendo cerca de 30 diferentes radiofármacos, que viabilizam a realização de mais de 300 mil procedimentos de diagnóstico e tratamento na área de medicina nuclear por ano, em 300 hospitais e clínicas especializadas em todo o país.

Já o IEN, do Rio de Janeiro, produz três tipos de substâncias: iodo-123 na forma de iodeto de sódio (Na123I), para o diagnóstico de disfunções da tireóide; meta-iodobenzilguanidina marcada com iodo-123 (MIBG123I), para diagnósticos em cardiologia e neurologia e flúor-desoxiglicose (18FDG), um emissor de pósitrons utilizado em tomógrafos PET, que fornece imagens de alta resolução em exames em cardiologia, oncologia, neurologia e neuropsiquiatria. O IEN fornece essas substâncias para hospitais e clínicas de medicina nuclear, principalmente dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Distrito Federal, e, eventualmente São Paulo.

Até o início de 2009, a produção nacional de radiofármacos será ampliada com a entrada em operação dos cíclotrons instalados no Centro Regional de Ciências Nucleares (CRCN), no Recife, e no Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN), em Belo Horizonte. A atuação das duas instituições vinculadas à Cnen permitirá estender os benefícios da medicina nuclear às regiões fora do eixo sul-sudeste. Devido ao decaimento (perda de atividade) do material radioativo, os radiofármacos não podem ser estocados e precisam ser repostos, no máximo, semanalmente. No caso do FDG, o isótopo usado no PET e que tem revolucionado o diagnóstico, principalmente em oncologia, a situação é ainda mais crítica. Como possui meia-vida de apenas duas horas, sua produção precisa ocorrer na mesma região do exame. Se for enviado para uma região muito distante, ao chegar, o material já perdeu toda a sua radioatividade.

Até 2006, a Cnen detinha o monopólio da produção e distribuição de radioisótopos. A flexibilização do monopólio estatal para produção e distribuição de radioisótopos de meia-vida curta faz parte da estratégia de criação da Empresa Brasileira de Radiofármacos, que vai incorporar as plantas de radiofármacos dos institutos da Cnen. E, como empresa, terá mais agilidade e flexibilidade para atender o mercado. O setor privado também poderá produzir os radioisótopos de meia-vida curta, desde que cumpra regras de proteção radiológica. Como resultado dessa flexibilização, já começam a surgir novos centros de produção. Instituições privadas de Porto Alegre e Brasília adquiriram cíclotrons para a produção de radioisótopos de meia-vida curta. Iniciativa semelhante foi tomada pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que investiu cerca de US$ 5 milhões na aquisição de um ciclotron e nas instalações que irão abrigar o equipamento.

A ampliação do número de cíclotrons, por sua vez, estimula a aquisição de tomógrafos PET. Hoje, há 17 PET-CTs instalados e outros 10 já foram adquiridos. Mas, para o dr. José Soares, o ideal seria que cada capital do país pudesse contar com um ciclotron. “Os laboratórios só investirão na aquisição de um equipamento PET, que é muito caro, se tiverem a certeza do fornecimento do FDG”, explica.

Obstáculos

O aumento da produção de radioisótopos e radiofármacos, no entanto, é apenas um passo para a disseminação da medicina nuclear por toda a população. Há outros obstáculos a serem vencidos e um dos principais é o custo final dos equipamentos utilizados para a realização dos procedimentos e os custos dos radioisótopos e radiofármacos para os laboratórios e hospitais. O presidente da SBBMN espera que a futura Empresa Brasileira de Radiofármacos pratique uma política de preços adequada. “Quando o preço do radiofármaco sobe causa impacto direto e imediato no valor dos exames. E o maior prejudicado é paciente”, afirma.

Se o custo é limitador, o grande impeditivo para o acesso a todos os exames e terapias da medicina nuclear é a falta de cobertura do SUS. Muitos exames, inclusive os utilizados no diagnóstico do câncer, não são cobertos pelo sistema. O dr. Soares cita como exemplo a pesquisa de linfonodo sentinela, um exame indicado em casos de câncer de mama, que contribui para evitar mutilações desnecessárias e também para reduzir o custo da cirurgia. Antes da cirurgia, a paciente com câncer de mama recebe uma injeção com radiofármaco marcado com tecnécio. Essa substância se aloja no linfonodo sentinela, assim chama substância se aloja no linfonodo sentinela, assim chamado por ser o primeiro linfonodo a receber as células cancerosas que migram do tecido mamário, quando ocorre um processo de metástase. Um aparelho detector localiza o linfonodo marcado com o material radioativo, que é extraído e submetido a análise laboratorial. Se o exame não detectar a presença de células cancerosas no linfonodo sentinela, não será preciso retirar a cadeia linfonodal, localizada em geral na axila da paciente. Com isso, além da mutilação, são evitados problemas pós-cirúrgicos adicionais, como edema no braço e dificuldade de movimentação. “É um exame simples e barato, mas o SUS ainda não autoriza o uso do aparelho detector na cirurgia”, espantase o presidente da SBBMN.

A exemplo do SUS, a Agencia Nacional de Saúde Complementar (ANS) também não inclui muitos exames de medicina nuclear em sua lista de procedimentos. Neste caso, os grandes prejudicados são os pacientes dos convênios de saúde e do próprio SUS, que não recebem autorização para realizar esse tipo de exame. Ao negar a cobertura, os convênios alegam que são obrigados a pagar apenas os procedimentos que constam no rol de procedimentos da ANS.

Além da inclusão de diversos procedimentos na tabela do SUS, a Sociedade também pleiteia uma remuneração correta para alguns exames que, embora cobertos, são deficitários para as instituições que os realizam. “O preço fixado para um exame de cintilografia com gálio, por exemplo, não paga sequer a dose do radiofármaco utilizado”, afirma José Soares.

Para ilustrar o grande atraso do Brasil no que se refere à disponibilização da medicina nuclear para a população, o dr. Soares compara o volume de exames realizados aqui e no exterior. Segundo ele, países como Canadá, EUA e Alemanha realizam cerca de 50 a 60 exames anuais de medicina nuclear por cada mil habitantes. Já no Brasil, são realizados anualmente, por cada mil habitantes, somente três exames na rede de saúde suplementar (convênios de saúde) e dois na rede do SUS.

Entre os motivos que vêm impedindo a incorporação de muitos procedimentos de medicina nuclear nas tabelas do SUS e da ANS está a idéia de que o custo de alguns exames é elevado. Embora reconhecendo que os preços dos procedimentos de medicina nuclear praticados no país possam vir a ser rebaixados, dependendo da política de valores praticados pelos radioisótopos e radiofármacos, o dr. José Soares explica que os valores dos procedimentos estão diretamente vinculados ao custo de aquisição dos equipamentos, em sua maioria importados, à logística que envolve o fornecimento de radioisótopos e radiofármacos e, principalmente, aos altos impostos que incidem sobre a importação de equipamentos de medicina nuclear. A carga tributária pode chegar a 70% do valor do equipamento. “Um laboratório que queira instalar um PETCT (equipamento que reúne o PET - tomógrafo por emissão de pósitron - e a tomografia computadorizada) precisa investir US$ 1, 2 milhões de dólares em sua aquisição e mais 70% desse valor em impostos. E, além disso, arcar com os custos de instalação, treinamento de pessoal e dos radiofármacos. Tudo isso influi no preço final dos exames”, argumenta o especialista.

Mas os benefícios obtidos compensam amplamente o custo dos procedimentos. Com custo estimado entre R$ 2.800 a R$ 3.500, uma tomografia realizada em PET-CT capta alterações com mais sensibilidade e precisão, o que favorece a tomada de decisão médica em relação à conduta mais adequada que pode ser, por exemplo, evitar a realização de exames invasivos como uma biópsia, ou uma cirurgia desnecessária, e os custos dela decorrentes. Para ilustrar, o dr. José Soares cita o exemplo de um paciente com câncer de pulmão. “Diante do resultado dos exames já realizados (procedimentos diagnósticos convencionais), o médico está inclinado a realizar uma cirurgia para remover o tumor. Mas, antes da decisão final, ele solicita o exame PET, que revela novas lesões, não apontadas pelos exames anteriores. Ao constatar que outros órgãos já foram afetados por um processo de metástase, o especialista contra-indica a cirurgia, que iria agredir um paciente já debilitado, sem resolver seu problema”, explica.

Uma revolução no diagnóstico

A Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET, na sigla em inglês) é baseada no emprego de radioisótopos emissores de pósitrons - partículas com massa igual à dos elétrons – como o flúor 18, o nitrogênio 13 e o oxigênio 15, que funcionam como marcadores de moléculas orgânicas. Essa tecnologia de alta resolução permite estudos diretos das funções metabólicas e da bioquímica celular que precedem as alterações estruturais e anatômicas dos tecidos e órgãos, possibilitando assim o diagnóstico precoce e mais preciso de tumores e também de doenças cardíacas e neurológicas.

O radiofármaco mais empregado nos exames PET é o FDG (flúordesoxiglicose), formado pelo radioisótopo flúor-18 e uma molécula de glicose. A substância, aplicada por injeção no paciente, é incorporada às células do organismo e, como os tumores malignos são ávidos por glicose, concentra-se nas células cancerígenas, onde o metabolismo celular é mais intenso. Os raios gama emitidos pelo FDG são captados pelo tomógrafo PET e transformados em imagens que representam o metabolismo glicolítico in vivo.

O PET é utilizado também em exames para avaliar a resposta ao organismo a tratamentos contra o câncer. No caso de linfoma, um tipo de câncer mais freqüente em jovens e com alta taxa de cura com quimioterapia, a redução das lesões é acompanhada através de tomografias computadorizadas (CT). No entanto, segundo o dr. José Soares, levará algum tempo para que a CT mostre a redução do tamanho de lesões consideradas curadas. “Há casos em que o tratamento é encerrado, mas a tomografia mostra a existência de uma massa, sem que se possa identificar se a mesma ainda é uma lesão tumoral ativa ou apenas uma cicatriz. Com o exame PET, que analisa o metabolismo de glicose da lesão, este diagnóstico diferencial é muito mais rápido e confiável”, esclarece.

“Vários são os exemplos dos benefícios da avaliação de pacientes oncológicos através do exame PET/CT. Sem dúvida, estamos vivendo na medicina uma transição onde a valorização das técnicas de medicina nuclear que utilizam informações baseadas em informações funcionais/fisiológicas estão em evidência. A SBBMN vem lutando junto às autoridades competentes e junto à comunidade médica e população em geral para disponibilizar todos os procedimentos de medicina nuclear – diagnósticos e terapêuticos convencionais e PET – para toda a população”, completa.

REVISTA BRASIL NUCLEAR, ANO 14, NÚMERO 33

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